Radio Digital – o que está em jogo?
Publicamos aqui um artigo enviado por Thiago Novaes
Rádio Digital no Brasil: a voz e a vez do ministro Gilberto Kassab
Em visita à Curitiba, o atual ministro Gilberto Kassab anunciou no dia 6 de junho de 2017 que o governo brasileiro “prepara uma nova etapa de modernização do setor de radiodifusão”: trata-se da digitalização do rádio, processo iniciado em 2010, que criou o Sistema Brasileiro de Rádio Digital, o SBRD.
O anúncio foi feito em um evento de promoção da controversa migração das emissoras AM para FM, ação desnecessária com a digitalização de todas as faixas de transmissão, conforme prevê a portaria 290 que orienta o SBRD. Revitalizando o AM, não apenas a qualidade do áudio desta faixa se equipara ao FM, como permite um alcance muito maior, com novos serviços e grande capilaridade para transmissão de dados digitais, considerando as características de propagação das ondas médias.
Os estudos para um sistema de rádio digital brasileiro já se prolongam há mais de dez anos. Em março de 2007, foi criado o Conselho Consultivo do Rádio Digital com o objetivo de auxiliar na avaliação e planejamento da implantação do Rádio Digital no país sendo integrado por 19 conselheiros, 7 representantes de órgãos/entidades públicos, 2 parlamentares, 7 entidades representativas do setor de radiodifusão; e 3 do setor industrial. A sociedade civil e a academia ficaram de fora da representação junto ao Conselho.
Em 2010, foi instituído o Sistema Brasileiro de Rádio Digital (SBRD), por meio da Portaria nº 290, e em 13 de junho de 2011 foi aberta uma chamada para sistemas de rádio digital se candidatarem a testes no Brasil, quando dois sistemas se apresentaram: o DRM e o HD Radio. Em parceria com emissoras executantes dos diferentes serviços de radiodifusão, o MCTIC tem realizado testes técnicos para verificar o desempenho dos diferentes modelos existentes. Esses testes são fundamentais para garantir o caráter e alcance universal do rádio tal como existe hoje e também a segurança para as emissoras.
O que significa Digitalizar o Rádio?
A digitalização do rádio traz grandes inovações. Primeiro, representa a oportunidade de melhor aproveitamento do uso do espectro de radiofrequências, pois o sinal digital é comprimido, podendo ampliar a cobertura com menor gasto de energia. Com isso, a interferência deixa de ser um obstáculo para ocupação de canais vizinhos, ampliando enormemente a possibilidade de haverem mais emissoras no espectro.
Com o digital, cada emissora pode se valer da multiprogramação, onde um mesmo transmissor pode enviar mais de um programa, o que pode ser especialmente útil para emissoras públicas e comunitárias. Novos serviços, uma qualidade de áudio superior e a possibilidade de transmissão de dados adicionais configuram finalmente esse novo ambiente digital como uma nova oportunidade de negócio para as emissoras, revitalizando o rádio enquanto uma plataforma de mídia convergente ainda a ser descoberta.
No caso brasileiro, uma outra característica chama a atenção: a interatividade. Assim como na TV Digital, que conta com a presença do middleware GINGA que permite a interatividade na TV – e foi desenvolvido no Brasil pelo Laboratório TeleMidia da PUC RJ sob a liderança do prof. Luis Fernando Soares (in memorian) -, o rádio também pode ser interativo e utilizar o GINGA. Uma das utilidades do GINGA é permitir que os dados, incluindo a transmissão de vídeos, cheguem aos recepetores por diferentes meios, tornando o rádio uma plataforma convergente com a Internet, por exemplo. Mas, diferentemente da Internet, a circulação do conteúdo digital do rádio continuaria aberta e gratuita, valendo-se do espectro público para se propagar.
Testes
Atualmente, dois padrões de rádio digital estão sendo considerados para servir como base técnica para o SBRD: O DRM e o HD Radio.
Características dos padrões DRM e HDRadio
O DRM (Digital Radio Mondiale), em português, Rádio Digital Mundial, é um padrão de rádio digital desenvolvido por um consórcio global de nome DRM, com sede na Suíça e representações em vários países.
É um padrão aberto, sendo o único padrão de rádio digital reconhecido pela UIT (União Internacional de Telecomunicações) que pode funcionar em todas as bandas de radiodifusão sonora terrestre: Ondas Médias, Ondas Tropicais, Ondas Curtas e o VHF (faixa das rádios FM).
Apresenta-se como um padrão de última geração, que começou a ser pensado em 1999 e, hoje em dia, está sendo testado em várias partes do mundo, inclusive no Brasil e já em fase de implementação na Rússia e Índia. O DRM foi criado com o objetivo de ser um padrão mundial e aberto, não de um país ou continente específico.
O HD Radio é o padrão utilizado nos Estados Unidos e desenvolvido por uma empresa chamada Ibiquity. Esse padrão não tem modo de operação para transmitir na faixa de Ondas Curtas e tem a característica de possuir segredos industriais em sua norma. Além dos Estados Unidos, apenas o México adotou este padrão.
Economia
A indústria nacional já incorporou todos os aspectos tecnológicos da TV Digital. Hoje em dia, empresas brasileiras (como a Linear) vendem mais transmissores do que a japonesa NEC em território brasileiro. Não há razão para que a implantação do SBDR com DRM, por exemplo, não siga o mesmo caminho da TV Digital. Por ser um padrão aberto, o DRM permite que possamos desenvolvê-lo totalmente em território nacional. Além disso, existem implementações da demodulação, decodificação e codificação do sinal DRM em software livre.
Possibilidades que a indústria nacional pode incorporar:
- Fabricação de chipset para recepção DRM (inclusos AM e FM);
- Fabricação de receptores móveis, portáteis e automotivos;
- Integração do receptor em aparelhos celular, tablet e GPS;
- Fabricação de moduladores, Content Servers e transmissores;
- Fabricação de equipamentos de análises e medições.
Já na área de serviços, as possibilidades são infinitas, semelhantes às possibilidades apresentadas pela TV Digital. Dentre elas, podemos citar o desenvolvimento de aplicativos e tecnologias em educação, cultura, serviços de interesse público, publicidade e produção de conteúdo em geral, podendo ser desenvolvidos tanto pelo poder público quanto pela iniciativa privada, centros de pesquisa, universidades, e organizações da sociedade civil.
O Ginga, conforme já dissemos, poderia ser também adotado como o padrão de interatividade para o Rádio Digital necessitando apenas de pequenas adaptações.
Com a adoção do DRM e a participação da indústria nacional neste processo, abrem-se as portas para mercados internacionais, notadamente na América do Sul e demais países que adotarem o padrão DRM, como África e Ásia. Apenas o Brasil já contribuirá com mais de 10 mil emissoras de rádio para digitalização global. Sem dúvida alguma o rádio é o meio de comunicação mais presente no cotidiano da população.
Tecnologia
O DRM usa o estado da arte em transmissão digital, sendo reconhecido pela UIT, fazendo o uso de tecnologias estabelecidas como o codec de áudio AAC – o mesmo já utilizado no padrão de TV digital brasileira. Esse fato permite a interoperabilidade entre os sistemas de tv e rádio digitais.
Proposto como padrão mundial, o DRM é o único padrão de rádio digital que transmite em Ondas Curtas e Ondas Tropicais, característica que possibilita o fornecimento de serviços com boa qualidade para áreas vastas, como faz a Rádio Nacional da Amazônia, com cobertura em todo o norte do país, por exemplo.
O sistema HDRadio, por outro lado, usa um codec de áudio que é “segredo industrial”, propriedade de uma empresa privada, inexistindo norma internacional que o descreve em sua totalidade.
O DRM possibilita a otimização do espectro de forma a permitir que mais emissoras possam transmitir simultaneamente. O DRM, assim como o HDRadio, permite a multiprogramação e a transmissão de dados digitais de qualquer natureza.
Para a faixa de Ondas Médias (AM), o DRM permite sua revitalização através da melhoria da qualidade do áudio e da agregação de serviços. Para faixa do VHF (FM), permite todas as qualidades de um amplo sistema de rádio digital como áudio estéreo, surround 5.1, multiprogramação, já citados anteriormente. Somente o DRM tem incluso em seu sistema a possibilidade de se fazer transmissão de vídeo em baixa resolução.
A faixa dos canais de TV VHF (após o apagão da TV analógica em 2016) também poderá ser utilizada para o rádio digital de forma que novos tipos de radiodifusão possam ter espaço para emergir.
O DRM está homologado pela UIT para ser utilizado como um sistema mundial de rádio digital terrestre para qualquer frequência entre 0 e 174 Mhz. Portanto, o DRM já está pronto e é o único sistema digital permitido para ser utilizado nas possíveis novas faixas de rádio, como a já sugerida faixa estendida do VHF, o “eFM” (76 a 88 Mhz).
No Brasil, uma empresa de nome TellHD S/A seria a detentora dos direitos do HD Radio no Brasil. Em reuniões do Conselho Consultivo do Rádio Digital (CCRD) representantes da empresa afirmaram que as emissoras brasileiras não iriam pagar taxas, que o sistema seria adaptado para utilizar somente um canal adjacente, que rádio comunitárias não iriam pagar pelo equipamento e que o sistema seria adaptado para funcionar em Ondas Curtas. Atualmente essa empresa aparentemente desapareceu (Vide http://tellhd.com.br/), e seu antigo diretor executivo, Alexandre Romano, foi preso pela Operação Lava Jato.
Adequação dos padrões de rádio digital à Portaria 290
O documento que orienta a escolha do Sistema Brasileiro de Rádio Digital é a portaria ministerial 290, de 2010. Na Câmara dos deputados, foi instituída uma Subcomissão para avaliar os padrões de rádio digital que se apresentaram ao Brasil, e o relator foi o dep. Sandro Alex.
Após ter seu primeiro relatório amplamente rejeitado, onde o deputado Sandro Alex defendia a adoção do HD Radio, e propunha que o Brasil considerasse o funcionamento no país de mais de um padrão tecnológico de rádio digital – um para o FM e outro para Ondas Médias – a pergunta sobre qual o padrão de Rádio Digital o Brasil irá adotar reaparece para o debate público e tem implicações muito sérias sobre o futuro da comunicação social do país.
Considerando que o HD Radio não funciona de maneira a “possibilitar a operação eficiente em ambas as modalidades do serviço” (Art. 2o) de Ondas Médias e Frequência Modulada, (pois o HD Radio não funciona no AM, nem em Ondas Curtas, faixa de nossa Rádio Nacional da Amazônia, por exemplo), nem está apto a “promover a inclusão social, a diversidade cultural do País e a língua pátria por meio do acesso à tecnologia digital, visando à democratização da informação” (Art. 3o, I) como seu concorrente, o Rádio Digital Mundial, que é de baixo custo, otimiza o uso do espectro e democratiza o acesso aos meios de comunicação; o HD Radio também não pode “propiciar a transferência de tecnologia para a indústria brasileira de transmissores e receptores, garantida, onde couber, a isenção de royalties” (Art 3o, IV) , pois é propriedade de uma única empresa, a Ibiquity, norte-americana, baseando seu negócio na cobrança de royalties, dificultando, e não possibilitando “a participação de instituições brasileiras de ensino e pesquisa no ajuste e melhoria do sistema de acordo com a necessidade do País” (Art 3o, V).
O HD Radio não está voltado para “incentivar a indústria regional e local na produção de instrumentos e serviços digitais” (Art 3o, VI), pelas razões já apresentadas, nem tampouco pode, com sua atual capacidade técnica, “proporcionar a utilização eficiente do espectro de radiofreqüência” (Art 3o, VIII), não sendo mesmo capaz de “possibilitar a cobertura do sinal digital em áreas igual ou maior do que as atuais, com menor potência de transmissão” (Art 3o, X) como já demonstrado pelo Rádio Digital Mundial, em testes realizados em uma Rádio Comunitária, no DF.
Além de todas essas ponderações, é ainda o Rádio Digital Mundial que pode “viabilizar soluções para transmissões em baixa potência, com custos reduzidos” (Art 3o, XIII), pois é considerado um padrão verde, economizando até 80% de energia e alcançando um maior raio atuação, muito melhor que o HD Radio, que não funciona em baixas-potências, como já alertaram pesquisadores brasileiros sobre a digitalização do rádio. E, finalmente, é o RDM o mais apto a “propiciar a arquitetura de sistema de forma a possibilitar, ao mercado brasileiro, as evoluções necessárias” (Art 3o, XIV), pois opera em software livre, um tipo de software que tem como princípio uma evolução técnica permanente, como prevê a portaria ministerial 290, que instituiu o Sistema Brasileiro de Rádio Digital (Art 1o), de 2010.
Surpreende a todos que vislumbram um papel de liderança para o Brasil junto aos parceiros da América Latina e do Sul Global o atual empenho do governo brasileiro em migrar as emissoras AM para FM quando a digitalização do rádio pode revitalizar o uso da faixa AM, permitindo uma qualidade de áudio comparável a de um cd. Tal migração leva adiante o Decreto Presidencial, o 8.139, de 7 de nov de 2013, que visa extinguir a faixa de AM das emissoras locais (Art 1o), desconsiderando que o padrão RDM atende a todas as faixas, inclusive a que se quer extinguir. Ainda mais supreendente é o fato de que as Rádios Comunitárias vêm reivindicando mais espaço no dial FM desde 1998, tendo-lhes sido atribuída uma única frequência, sob o argumento de que não havia espaço para mais emissoras: subitamente, quase 2 mil rádios AM possuem espaço para migrar para o FM. Isso sem falar no duplo custo envolvido nessa migração: a proposta é que as emissoras AM comprem transmissores FM, de média e alta potência, para depois comprarem seus transmissores digitais. Quanto desperdício de recursos e de tempo!!
Resumo
1. O Rádio Digital Mundial (Digital Radio Mondiale) opera com qualidade tanto nas bandas do AM (Ondas Médias e Ondas Curtas) quanto na faixa do FM, satisfazendo a exigência do MiniCom (Portaria 290).
2. O Rádio Digital Mundial é extremamente flexível, possibilitando às emissoras adaptarem a robustez do sinal de acordo com a área de cobertura desejada. Sua capacidade de operar na faixa de Ondas Curtas permite um alcance continental potencializando a integração regional (América Latina e Caribe) e intercontinental (Sul Global).
3. O Rádio Digital Mundial não representa apenas a atualização tecnológica do rádio, mas se configura como uma nova plataforma multimídia que pode ser incluída em diversos dispositivos eletrônicos como telefones celulares, tablets e GPS, permitindo novos serviços comerciais a já conhecida radiodifusão.
4. Com o Rádio Digital Mundial, o Estado brasileiro potencializa sua comunicação e serviços, ampliando o alcance das emissoras públicas, comunitárias e educativas, algo que nenhum dos outros padrões permite.
5. O Rádio Digital Mundial é um padrão global reconhecido pela ITU (agência da ONU para tecnologias de informação e comunicação), desenvolvido e gerido por um consórcio internacional aberto. Já o outro padrão considerado para adoção pelo Brasil, o HD Rádio, é propriedade de uma empresa estadunidense, a Ibiquity. Este sistema, além dos royalties envolvidos, contém segredos industriais como o codec de áudio, que é uma “caixa preta”.
6. O padrão técnico Digital Radio Mondiale é aberto. Considerando que já existe desenvolvimento em software livre para sua implementação, permite que universidades, centros de pesquisa e empresas possam facilmente inserir novas funcionalidades ao sistema.
Acreditamos, portanto, que o DRM é a melhor opção para o desenvolvimento do Sistema Brasileiro de Rádio de Digital – SBRD.
Sobre a Migração das emissoras AM para o FM ver:
http://www.drm-brasil.org/content/migra%C3%A7%C3%A3o-para-do-am-para-o-fm-quem-interessa
Artigo sobre o potencial do Rádio Brasileiro Digital Interativo, ver (em inglês):
http://revista.ibict.br/liinc/article/view/3768
RESUMO Este artigo se volta para a iminente definição do Sistema Brasileiro de Rádio Digital (SBRD), tendo como objeto privilegiado de análise o middleware Ginga, desenvolvido para a TV Digital Interativa Brasileira. Aponta para a importância da pesquisa colaborativa e independente dos cidadãos envolvidos na defesa da Digital Radio Mondiale como padrão para o Rádio Digital Brasileiro e argumenta que o surgimento de uma nova gestão dinâmica do espectro torna obsoleto o seu uso exclusivo, regido historicamente por regimes de concessão. Por fim, observa criticamente a mercantilização do espectro como o principal obstáculo à transição do analógico para o digital e afirma a emergência de um novo paradigma do espectro, abundante, como bem comum tecnológico.
Palavras-chave: Televisão Digital; Rádio Digital; Middleware Ginga; Espectro; Paradigma.