Invisível comum
Nesta primeira semana de setembro tivemos uma pletora de acontecimentos chocantes: o terremoto mais forte do século no México, um furacão poderoso destruindo as ilhas da América Central e costa sul dos EUA, muitas malas cheia de dinheiro da corrupção de políticos e empresas brasileiras, entre outras. Porém, a notícia que mais me acompanhou durante essa semana foi uma reportagem do caderno de Ciência da Folha de S.Paulo sobre a contaminação da água que chega nas torneiras de residências em diversos países do mundo. Não farei qualquer comparação entre cada uma dessas tragédias, todas incomensuráveis quando falamos de tantas vidas perdidas, direta ou indiretamente (sim, a corrupção provoca mortes lentas e precariedade em toda parte). Hoje escrevo sobre aquilo que nos escapa aos sentidos.
A reportagem do Marcelo Leite está baseada na pesquisa – “Invisível – o plástico dentro de nós” – sobre a contaminação da água por fragmentos de plástico, recentemente publicada pela Orbmedia. O relatório, com excelente documentação multimédia está disponível neste link: https://orbmedia.org/stories/Invisibles_plastics
Em resumo, a investigação mostra como a água que chega nas torneiras nas residências e prédios, em diversos lugares do mundo, apresenta partículas de plástico. A amostragem realizada indica que o problema está presente em muitas cidades de diversos países (do sul e do norte global), variando o percentual de sua presença. Só para dar alguns dados: nos EUA cerca de 94% das cidades apresentam contaminação; na Europa 72% das cidades estão com água com plástico; e na cidade de São Paulo, das 10 amostras recolhidas, 9 confirmaram a contaminação.
Enfim, o plástico está em toda parte, inclusive dentro de nós. Sabe-se pouco ainda sobre os efeitos de médio e longo prazo dessa ingestão. Em outros animais, cujo processo de contaminação já é estudado há mais tempo, os problemas da intoxicação são mais conhecidos. Pra complicar, o plástico torna-se um agregador de moléculas tóxicas de outras substâncias e elementos que estejam presentes no ambiente. E claro, quando cozinhamos com essa água os elementos tóxicos são liberados ou se transmutam em outras substâncias cujos efeitos nocivos ainda são desconhecidos. A reportagem indagou a Sabesp que diz cumprir com todas as normas sanitárias do Ministério da Saúde. Vejam a reportagem e o relatório para conhecer melhor o problema.
Mas essa notícia disparou algumas inquietações. No final da segunda guerra mundial, com o surgimento e proliferação das armas nucleares, instalou-se a chamada Guerra Fria. Durante décadas a população mundial, mas principalmente a dos países diretamente envolvidos, viveu sobre a constante ameaça do apocalipse nuclear. A vida sob tal situação engendrou formas de governo, tecnologias políticas de gestão das populações e toda uma geopolítica da qual ainda somos herdeiros. Passada a Guerra Fria o apocalipse nuclear ganhou outras feições. Uma delas é o apocalipse ambiental, onde os seres humanos são os principais responsáveis pela destruição do planeta. A constatação de que o plástico que produzimos está presente em toda parte (mesmo na água de áreas consideradas inóspitas) reforça uma idéia potente de que vivemos num “mundo sem refúgio”. Não há mais separação entre a ação humana e a vida no planeta, onde quer que estejamos. Trata-se, portanto, de pensar nossa ação num mundo em que não há mais um “fora” (natureza intocada ou pura), mas sim interconexão e interdependência, para a partir daí construirmos outras composições e modos de vida possíveis.
Tanto no caso do apocalipse nuclear como no desastre ambiental em curso confrontamo-nos com problemas sistêmicos. Porém, a maneira como nossas vidas participam de cada um deles é absolutamente diferente. No caso do apocalipse ambiental sua gênese e reprodução está profundamente entrelaçada com a vida cotidiana de todos os humanos. Para tornar a diferença mais clara tente imaginar a vida sem o plástico, ou imagine todos os processos envolvidos para levar água para todas as residências de uma cidade. Facilmente percebemos como nossos modos de vida, em seus mínimos detalhes cotidianos, são parte constitutiva deste problema do qual todos somos afetados. Ainda assim, trata-se de um problema invisível.
Esta invisibilidade é uma característica frequente de muitos elementos que são “comuns” a nossa existência. O comum aqui tem um duplo sentido: aquilo que é ordinário, corriqueiro; e aquilo que é compartilhado. Muitos elementos que são dessa ordem “comum”, são fundamentais no suporte à nossa vida, individual e coletiva, mas ainda assim são intangíveis e invisíveis. A saúde que perdemos quando sofremos com a contaminação, a qualidade da água que deixamos de ter, as relações de cuidado e os vínculos de solidariedade, são nossos “comuns” ameaçados por diferentes dinâmicas. Dar existência visível e politizar esses “comuns” é um caminho de luta política que muitas comunidades de afetados e movimentos sociais estão enveredando.
Neste percurso desafiamo-nos a fazer novas e boas questões. Quando reunimos gente diversa, afetada pelo mesmo problema, compreendemos melhor a dinâmica em curso, seus efeitos e os múltiplos arranjos necessários para dar suporte àquele comum. Conseguimos dar melhor visibilidade e tangibilidade à algo que, de tão comum, era menosprezado como uma segunda “natureza”. O que é necessário para que eu tenha água em minha casa? O que é necessário para que eu tenha energia elétrica nas tomadas? Eu poderia viver sem essa água ou sem eletricidade? Por isso, quando dizemos “água para todos é um direito” ou “moratória à produção de plástico”, nos damos conta que já não é o suficiente. Nossa dependência desses sistemas e arranjos sociotécnicos complexos nos obrigam a outras reflexões, a outras estratégias.
Essa percepção de interdependência e interconexão num mundo sem refúgio, obriga-nos a reconhecer que as mudanças que desejamos são mais complexas e passam por um profundo redesenho de nossos cotidianos: as formas de alimentação, moradia, energia, cuidados, transporte, educação etc. Se desejamos uma política dos 99% deveríamos prestar mais atenção ao que é comum e invisível, mas que organiza e sustenta de forma imanente os modos de vida do qual participamos.
PS: este post é parte da série de relatos que irei realizar durante o período de pós-doc em Madrid. Mais informações sobre o projeto atual: http://wiki.pimentalab.net/index.php?title=Projetos_Pesquisa