Pesquisas científicas realizadas com a participação de leigos ganham espaço
Fonte: Reportagem da Revista FAPESP:
por BRUNO DE PIERRO | ED. 259 | SETEMBRO 2017
Momentos antes de o eclipse total do Sol atravessar os Estados Unidos de costa a costa no dia 21 de agosto, a agência espacial norte-americana (Nasa) convidou o público para colaborar em um experimento bastante simples. Munidos de termômetros e smartphones, milhares de voluntários espalhados pelo país foram instruídos a baixar um aplicativo e registrar nele eventuais mudanças de temperatura no ambiente durante o eclipse. Os participantes também deveriam reportar se a velocidade e a direção das nuvens sofreram alterações abruptas. As informações coletadas pelos celulares abasteceram uma base de dados e serão utilizadas em estudos ambientais. “A população pode nos ajudar a entender quais são os efeitos de um evento raro, como o eclipse solar, na atmosfera”, disse à rede de televisão Fox News Elizabeth MacDonald, pesquisadora da agência.
A iniciativa é inspirada em um modelo conhecido como ciência cidadã, que estimula a produção do conhecimento por meio da colaboração entre pesquisadores e público leigo. A participação de amadores na atividade científica não é novidade – a figura do cientista profissional só surgiu no século XIX. Nas últimas décadas, com o uso de tecnologias digitais, tornou-se recorrente pesquisadores convidarem o público para cooperar, por exemplo, na coleta de dados meteorológicos ou no mapeamento de espécies. “Mídias sociais, bases de dados eletrônicas e dispositivos como tablets e smartphones oferecem novas possibilidades de compartilhar ideias e informações entre cientistas e cidadãos”, avalia o biólogo Robert Stevenson, professor da Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos, um estudioso da ciência cidadã.
Nos últimos anos, organizações como os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) e a National Science Foundation (NSF), nos Estados Unidos, passaram a apoiar projetos que incluem ciência cidadã e estudos que buscam as melhores práticas para assegurar a integridade científica em pesquisas feitas em colaboração com o público. No ano passado, a Comissão Europeia se comprometeu a financiar, por meio do programa Horizonte 2020, projetos que envolvem ciência cidadã. A iniciativa é uma parceria com o Doing it Together Science, um consórcio formado por instituições científicas e organizações não governamentais sob coordenação do University College London, no Reino Unido. No Brasil, o Sistema de Informação sobre a Biodiversidade Brasileira (SiBBr), um projeto do governo federal, anunciou em fevereiro que irá apoiar a formação de uma Rede Brasileira de Ciência Cidadã em Biodiversidade, em que cidadãos ajudarão no monitoramento de espécies.
Algumas experiências bem-sucedidas que ganharam proporções globais nos últimos anos inspiram os novos projetos. Uma delas é o eBird, iniciativa lançada em 2002 pela Universidade Cornell, nos Estados Unidos, que reúne dados de aves fornecidos por observadores amadores e ornitólogos. A plataforma tem mais de 300 mil usuários de 252 países e cerca de 300 milhões de registros de aproximadamente 10.300 espécies de aves. Uma versão brasileira do eBird está em funcionamento desde 2015 (ver Pesquisa FAPESP nº 245). “Em 16 anos de existência, o eBird tornou-se uma referência em estudos de aves e gera conhecimento capaz de auxiliar na elaboração de estratégias para a conservação da biodiversidade”, afirma Stevenson.
Outra iniciativa é o Galaxy Zoo, criado por pesquisadores vinculados a várias instituições norte-americanas que convocam astrônomos amadores para ajudar a classificar imagens de galáxias geradas por telescópios. Desde seu lançamento em 2007, a comunidade do Galaxy Zoo identificou um conjunto de galáxias e muitas dessas descobertas foram relatadas em artigos científicos. A astronomia talvez seja o campo do conhecimento em que a participação do público ocorra há mais tempo. “Após a publicação dos trabalhos do italiano Galileu Galilei, começaram a aparecer sociedades civis de observação do céu”, comenta Augusto Damineli, professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP). Atualmente, com a ampliação do acesso a telescópios de pequeno porte e da circulação de imagens de satélites em sites especializados, a astronomia amadora participa da identificação de estrelas, asteroides e planetas. No início do ano, o mecânico e astrônomo amador australiano Andrew Grey descobriu um sistema formado por quatro exoplanetas, após avaliar mais de mil imagens de estrelas registradas pelo telescópio Kepler, da Nasa, disponibilizadas na internet pela plataforma Exoplanet Explorers. O feito foi validado por astrônomos profissionais e rendeu a publicação de um paper, com Grey como coautor.
“Eu mesmo já publiquei em coautoria com não acadêmicos”, sublinha Damineli. Em 2014, ele coordenou uma pesquisa sobre o apagão da Eta Carinae, sistema composto por duas estrelas, registrado naquele ano. “Era necessário observar ao longo de 10 meses seguidos, todas as noites, utilizando espectroscopia”, conta. “Divulgamos uma chamada internacional pedindo a colaboração de amadores e obtivemos ajuda de quatro voluntários na Nova Zelândia e na Austrália.” Os dados de observação foram determinantes na descrição de um novo fenômeno, a formação de um buraco na superfície da estrela (ver Pesquisa FAPESP nº 244).
Uma das principais contribuições da colaboração do público em pesquisas é a produção de informações que talvez não pudessem ser geradas de outra maneira – em parte porque as iniciativas têm potencial para mobilizar um grande número de voluntários na coleta de dados em áreas extensas e durante longos períodos. Mas o modelo ainda encontra resistências. “Muitos pesquisadores têm receio de trabalhar com pessoas sem formação científica”, afirma Stevenson. Um dos motivos, ele explica, é a desconfiança em relação à qualidade dos dados produzidos. “Os projetos de ciência cidadã devem adotar procedimentos rigorosos para assegurar a validade dos dados.” Para a pesquisadora Andrea Wiggins, da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, projetos bem-sucedidos como o eBird dependem de um conjunto de metodologias capazes de aumentar a precisão dos dados. “Trata-se de oferecer aos voluntários treinamento técnico para executar as tarefas propostas pelos cientistas. Além disso, os dados coletados pelos cidadãos devem passar pelo crivo de especialistas”, escreveu Wiggins em artigo publicado em 2016.
Na Universidade Federal do ABC (UFABC), um grupo de pesquisadores propõe, aplica e avalia protocolos que orientam o trabalho de voluntários em projetos de ciência cidadã. “Elaboramos um passo a passo que mostra ao participante, em linguagem clara e objetiva, os objetivos da pesquisa e recomendações que devem ser seguidas durante o trabalho”, explica a bióloga Natália Pirani Ghilardi-Lopes, coordenadora do Grupo de Pesquisa em Ciência Cidadã da UFABC. A finalidade, diz ela, é estabelecer padrões para que a obtenção e a análise de dados sejam feitas com o máximo de precisão possível. Essa metodologia vem sendo testada em alguns estudos do grupo. Um deles é o mestrado da bióloga Larissa de Araújo Kawabe, que envolve dados obtidos na Estação Ecológica Tupinambás, no litoral norte de São Paulo. O projeto conta com a participação de funcionários da estação que são mergulhadores e que, munidos de câmeras subaquáticas, ajudam a coletar imagens dos costões rochosos na ilha das Palmas. O objetivo é monitorar organismos marinhos, como algas e esponjas.
Posteriormente, para a análise das fotos, os participantes passam por um treinamento de quatro horas – uma das diretrizes do protocolo. “Explicamos a eles como as fotografias foram obtidas e como devem ser analisadas posteriormente”, conta Larissa. Ela enfatiza que os voluntários participam não só da obtenção das fotos, mas também da identificação de organismos. Estudos como esse, por exemplo, podem servir para detectar precocemente a presença de espécies exóticas, como o coral-sol, fotografado na estação ecológica. Trata-se de uma espécie que está se espalhando pela costa brasileira, competindo com espécies nativas.
Boa parte dos projetos envolve o público exclusivamente na coleta de dados, mas alguns pesquisadores veem outras formas de participação dos amadores. De acordo com a cientista social Sarita Albagli, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict), é possível identificar duas grandes abordagens de ciência cidadã. A primeira utiliza voluntários para aumentar a velocidade e a quantidade da coleta de dados. “A segunda promove o envolvimento dos cidadãos também na discussão sobre as próprias questões e objetivos da pesquisa, com base nos conhecimentos obtidos a partir de suas experiências”, afirma Sarita, que coordenou um projeto em Ubatuba que buscou incorporar essa concepção de participação cidadã na pesquisa. Para Stevenson, da Universidade de Massachusetts, envolver o público em todas as etapas da pesquisa nem sempre é factível. “Há temas que não despertam tanto interesse do público e outros que exigem das pessoas muito tempo de treinamento e dedicação”, diz ele.
Algumas experiências internacionais têm incentivado interações mais profundas. Uma delas é o MediaLab-Prado, espaço cultural criado há 10 anos pela prefeitura de Madri, na Espanha, conhecido pela difusão de um modelo de laboratório cidadão. Pesquisadores, ativistas e cidadãos reúnem-se para investigar possíveis soluções de problemas, em diferentes linhas de pesquisa, como urbanismo, participação social e tecnologias sociais. “Essa iniciativa passou a promover, por meio de editais públicos, experiências de investigação colaborativa e inovação social que receberam o nome de laboratórios cidadãos”, explica Henrique Parra, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), atualmente em um estágio de pós-doutorado no Conselho Superior de Investigação Científica da Espanha.
Qualquer pessoa que tenha uma proposta de pesquisa pode concorrer aos editais do MediaLab-Prado. Se o projeto for aprovado, o participante passa a fazer parte de uma rede de colaboradores acadêmicos e não acadêmicos, que poderão ajudar no desenvolvimento do trabalho. Antonio Lafuente, pesquisador do Centro de Ciências Humanas e Sociais do Conselho Superior de Investigações Científicas da Espanha e um dos diretores do MediaLab-Prado, explica que a ideia é criar ambientes onde problemas possam ser identificados, documentados e contrastados com diferentes pontos de vista. “Uma enorme quantidade de conhecimento emerge fora das universidades e instituições de pesquisa. Não se trata mais de separar o mundo entre os que sabem e os que não sabem, mas de unir experiências”, propõe Lafuente.
Ainda que pontuais, outras iniciativas semelhantes ao MediaLab-Prado buscam propor formas mais amplas de colaboração na ciência. O Public Lab, por exemplo, nasceu após o vazamento de petróleo no golfo do México em 2010. Diante da falta de informações oficiais sobre o desastre, moradores da costa sul dos Estados Unidos, em parceria com pesquisadores e engenheiros, construíram pequenos sistemas de monitoramento utilizando balões e câmeras digitais para coletar imagens em tempo real. Foram produzidas mais de 100 mil imagens aéreas de alta resolução. O episódio levou à criação de uma comunidade aberta, o Public Lab, hoje mantido por doações de instituições como o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e a NSF.