Inspirações de partida para mais uma disciplina de estágio supervisionado no ensino de sociologia
foto de Michael Wolf: http://www.hypeness.com.br/2013/02/fotografo-registra-a-vida-claustrofobica-dos-cidadaos-de-hong-kong/
Amanha, 27 de março de 2018, começam as aulas da disciplina Ensino de Sociologia II e Estágio Supervisionado, na Unifesp. Nas edições anteriores em que ministrei essa disciplina fomos experienciando diferentes modos de organização e realização do curso. As disciplinas do estágio tem o desafio de combinar a formação teórica à prática, articulando essas dimensões de forma simétrica e imanente em todas as atividades realizadas.
Diferentemente das outras disciplinas do curso, a realização do estágio depende sobremaneira de fatores exógenos com os quais temos que desenvolver formas de adaptação e negociação permanente. Por exemplo, a oferta e abertura de oportunidades de estágios pelas escolas e professores, a disponibilidade dos professores para receber nossos estudantes, os dias e os locais de oferta da disciplina de Sociologia nas escolas, a coincidência ou a desincronia entre a oferta do campo de estágio e a disponibilidade dos próprios estudantes. Enfim, é sempre uma equação complexa.
Ademais, a disciplina de estágio também se caracteriza por ser um dos poucos momentos do curso em que, obrigatoriamente, a universidade tem que estabelecer relações de mão-dupla com o seu “fora” (escolas, organizações culturais etc). Em outros momentos do curso também existe essa interação com o “fora”, porém ele se dá principalmente através da realização de pesquisas, seminários ou projetos específicos. O estágio, por sua vez, exige uma relação de colaboração orientada pela construção de condições de maior simetria, horizontalidade e solidariedade entre os diversos atores envolvidos no processo, sem o qual o estágio não se desenvolve.
Por isso, gosto de pensar no estágio como uma disciplina que deve ser capaz de construir uma zona de intersecção, traduções e transducções entre diferentes práticas e saberes: as práticas e os saberes universitários, as práticas e saberes escolares, as práticas e os saberes dos professores, dos estudantes, das instituições, das disciplinas etc. Talvez, a noção de “ecologias de práticas” proposta pela filósofa Isabelle Stengers possa ser útil para tomarmos o estágio como essa situação em que experimentamos fomentar uma ecologia das distintas práticas e saberes que aí se encontram:
“An ecology of practices may be an instance of what Gilles Deleuze called ‘thinking par le milieu’, using the French double meaning of milieu, both the middle and the surroundings or habitat. ‘Through the middle’ would mean without grounding definitions or an ideal horizon. ‘With the surroundings’ would mean that no theory gives you the power to disentangle something from its particular surroundings, that is, to go beyond the particular towards something we would be able to recognise and grasp in spite of particular appearances.” (STENGERS, p.187.)
“Cada práctica serían una forma de producir y estar en el mundo “una perspectiva que celebra la existencia de todo tipo de seres que plantean específicamente la cuestión de lo que cuenta para su propia forma de vida […] todo aquello para lo que la existencia implica una apuesta, un riesgo, la creación de un punto de vista sobre qué, desde ese momento, se convertirá en su medio (milieu).” [2003: 37 apud Osfa]
Outro conceito que Stengers mobiliza (de empréstimo de Brian Massumi), e que também nos será útil no estágio, é a idéia de “tecnologias sociais de pertencimento”:
“Social technology of belonging, as it deals with people who are not only social beings but people who belong, would then be that technology which can and must address people from the point of view of what they may become able to do and think and feel because they belong.
[…]
“This is why technology of belonging is not a technique of production but, as Brian Massumi put it, works both as challenging and fostering. Its two main matters of concern are the question of empowering, a matter of fostering, and the question of diplomacy, a matter of challenging. Inversely, challenging as associated with diplomacy, and fostering as associated with empowering, must make explicit the cosmopolitical stance that ‘we are not alone in the world’.”
A escolha de caminhar com esses conceitos não é trivial. Tomar o estágio como tempo-espaço de uma experiência situada na perspectiva de uma ecologia de práticas, implica num desafio simultaneamente epistemológico e político, que aposta na criação de formas de convivência entre mundos, práticas e modos de conhecer distintos. É a partir dessas referências que pretendo experimentar transformar a disciplina do estágio neste semestre em um “laboratório cidadão”, inspirado aqui nas palavras de Antonio Lafuente:
“Um laboratório cidadão é um espaço de produção aberta do conhecimento.
É um lugar capaz de acolher um coletivo heterogêneo de atores que almejam dar forma a um entorno social. É portanto um lugar onde nos obrigamos a identificar uma problemática, documentá-la, isolar suas características mais notáveis, contrastar os distintos pontos de vista, explorar as diferentes formas de abordagem, extrair conclusões e comunicar as descobertas, dúvidas e fracassos. Aqueles que a integram se autoconfiguram como uma comunidade de aprendizagem aberta a toda variedade de atores e a toda pluralidade de pontos de vista. De forma que sua primeira tarefa é encontrar uma linguagem comum, ou seja, um espaço que torne possível a conversação sem que ninguém imponha seu ponto de vista e sem que ninguém tenha o poder de fechar/bloquear um tema porque considera que já se discutiu o suficiente.
Um laboratório cidadão é, portanto, um espaço para aprender a viver juntos: uma incubadora de comunidades. Um laboratório cidadão é um espaço, por antonomásia, para a política experimental, pois sendo hospitaleiro com as minorias e tratando-as como sensores de aviso antecipado de problemas porvir, estaríamos encontrando respostas situadas e inclusivas para assuntos todavia incipientes e talvez mais frequentes, gerais ou agudos no futuro.
É um laboratório porque aposta na cultura experimental, no contraste de pontos de vista, nas práticas abertas e na comunicação pública. É cidadão porque confia na inteligência coletiva e outorga maior dignidade cognitiva ao experiencial, o que é o mesmo que dizer que um laboratório cidadão nunca dividirá o mundo entre os que sabem e os que não sabem.” [https://pimentalab.milharal.org/2017/12/12/sentidos-de-um-laboratorio-cidadao-por-antonio-lafuente/]
Evidentemente, isso nos coloca inúmeros desafio. A principal dificuldade é superar a frequente individualização das experiências de estágio que cada estudante envereda. O desafio de transformar uma sala de aula e um grupo diverso de estudantes em um processo de aprendizagem coletiva é análogo ao desafio que cada professor enfrenta na escola diante de uma sala de aula. Como conciliar as singularidades de cada estudante e a maneira como cada um aprende, com os espaços, situações e práticas escolares que são coletivos? Podemos transformar uma sala de aula, o ensino de uma disciplina universitária ou escolar em um laboratório cidadão? Esta é uma das hipóteses que iremos investigar.
ps: inicialmente irei documentar esta edição da disciplina nesta página wiki (ainda em elaboração): https://pt.wikiversity.org/wiki/Ensino_de_Sociologia_e_Est%C3%A1gio_Supervisionado/II-2018