Políticas do comum: alianças entre o sensível e o intangível
Resumo: Quais os modos de relação entre a produção do comum e a experiência sensível, na prática investigativa, educativa e política? Nesta atividade pretendo compartilhar algumas idéias sobre este problema-convite lançado pela equipe da Bienal. A partir da diversidade de sentidos atribuídos ao “Comum” na atualidade, discutiremos algumas práticas (culturais, científicas, ativistas) onde podemos apreender e problematizar essa riqueza semântica. A hipótese que examinarei sobre uma política do comum, baseia-se em possíveis alianças e composições entre certos modos de conhecer, modos de associar-se e criar experimentações práticas que talvez apontem para territórios alternativos à dicotomia da micro-macro política. O texto a seguir foi apresentado oralmente no dia 30 de junho de 2018 na BienalSP no ciclo de atividades de difusão e formação.
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O setor Educativo da BienalSP (33°Edição-2018) me convidou para participar de uma atividade de formação dos educadores, parte dos trabalhos de elaboração e preparação das ações educativas que serão realizadas durante a exposição. A proposta inicial era a de relacionar as reflexões em torno da “produção do comum” e a “partilha do sensível” (aqui, com um clara referência a J.Ranciére). Fui ler os materiais produzidos pelo educativo para imaginar como poderia aproximar essas coisas. Compreendi que tanto o Gabriel Perrez-Barreiro (curador) como a Lilian Kelian e Helena Freire (educadores) estão interessados em pensar e praticar uma certa “política da atenção”. Eles partem do diagnóstico de que há um problema na forma como nos relacionamos com as obras de arte numa exposição. Por diversas razões, incluso a proliferação das tecnologias de comunicação digital, estamos imersos em profundas transformações em nossa sensibilidade, nossa percepção, em nossa atenção. Assim, um dos desafios que eles enfrentam é como “recuperar esse sentido da arte como canal de experiência e de comunicação” de forma que seja possível aprender algo novo com a experiência ali vivida. As educadoras lança a segunda pergunta: “se a percepção é algo marcadamente afetivo e que se sustenta num certo “regime de sensibilidade”, de que maneira seria possível transformar esse “regime” (no sentido, de ampliar as nossas capacidades de dialogar com o outro)? Ainda a partir do material produzido por eles, entendo que uma das formas encontras por eles para enfrentar esse problema é criar estratégias, roteiros, procedimentos, protocolos que estejam orientados à “produção de situações”, onde outros modos de relação entre os públicos, obras e educadores, possam emergir. Com isso, espera-se provocar mudanças no “regime de sensibilidade”, de maneira que um “acontecimento” (um novo vínculo, um novo aprendizado, uma nova percepção) seja possível. Evidentemente, sabemos que não é possível programar um acontecimento. A questão é colocar essa possibilidade como uma hipótese a ser verificada-experimentada, e assim desenhar (prototipar) os diversos elementos que participam da produção dessa situação: quais as estruturas, normas, ritmos etc que sejam mais acolhedores a ativação desses devires? Por fim, a aposta (se compreendi bem) é que neste processo teríamos a “produção de um Comum”.
Dito dessa maneira, fica evidente pra mim, que o problema que eles estão investigando é análogo ao que encontramos na construção dos “laboratórios cidadãos” (ou Laboratório do Comum), na acepção de Antonio Lafuente. A existência, produção e manutenção de um Comum depende tanto de uma comunidade que o produza-sustente como de um conjunto de infraestruturas, códigos, práticas, tanto materiais como simbólicas. Ocorre que o Comum é frequentemente invisível, intangível e não-codificado. Ele só é facilmente percebido quando está sob ameaça. O Comum não é se confunde com o público-estatal, nem com privado. O Comum é um outro espaço, é uma terceira-margem (roseana) que ficciona a realidade produzindo outros mundos.
O problema do “Comum” não pode ser separado (como bem descreveu o médico-sanitarista Ricardo Teixeira) de um problema da “percepção do Comum”. Por isso, a forma do Comum transitar entre o intangível e o sensível depende de um regime de sensibilidades que faz parte de uma Política, onde as dimensões afetivas-culturais-econômicas são indissociáveis.
Outra característica importante que já podemos destacar, é que o Comum (nesta acepção que estamos utilizando) é algo que é produzido “entre-todos”. Porém, não à maneira de um “comum partilhado” entre indivíduos. O Comum neste caso, é algo que está aquém e além dos indivíduos: é pré-individual e supra-individual. Podemos, de certa forma, traçar uma analogia deste comum com o transindividual do G. Simondon. Aqui o Comum transpassa os indivíduos. Não é o produto de uma ação individual de um sujeito descolado do mundo que vai interagir com outros sujeitos. O Comum neste caso funda uma relação de continuidade entre os corpos e deles com o mundo. A linguagem, os afetos, a cultura, a saúde são alguns exemplos desse comum.
Um bom exemplo citado por Lafuente é o problema da eletrossensibilidade. Lafuente relata como muitas pessoas eram portadores de um mal-estar inominável e desconhecido. Durante muito tempo viveram sem diagnóstico. Mas passaram a se encontrar, a trocar experiências, a se escutar, e deram início a um rico processo de produção de conhecimento; uma espécie de contra-expertise baseada naquilo que em que eles eram experts (a experiência de sua doença). Criam uma linguagem em que são capazes de dar existência ao seu problema, e assim tornam a questão da poluição eletromagnética um problema da ordem do Comum. Este processo só ocorre porque fundam uma comunidade de “afetados” que também irá mostrar, mobilizando muitos atores (humanos e não-humanos) como este Comum (o espectro eletromagnético) é produzido, utilizado, explorado. A luta contra a poluição eletromagnética produz o Comum (tanto a saúde como o espectro eletromagnético) ao revelar os modos de uso e apropriação da radiofrequência e quais são as infraestruturas, códigos, leis, economia que se aplicam sobre ele.
Mas o Comum nos dias atuais tem ainda múltiplos sentidos. Antes de avançarmos nessa caracterização, acho importante indicar quatro fatores que contribuem para o que podemos chamar de “reemergência” do Comum. Não é a toa que o Comum retornar hoje como um vocabulário da moda (Silvia Federici faz uma excelente contextualização desta reemergência num texto sobre o Feminismo e o Comum). E se dizemos que ele “retorna” é porque ele existiu em outros períodos históricos. De maneira sintética temos:
(a)a experiência da expansão da economia capitalista sobre o que resta de bens comunais, promovendo novas expropriações e cercamentos de diversas comunidades indígenas e/ou tradicionais;
(b)a invasão da lógica privatista e monetarista sobre diversos domínios de nossa vida social, levando à corrosão do comum que dá suporte à manutenção da vida em sociedade (basta pensar nas diversas formas de erosão das relações de solidariedade, da crescente solidão de parcelas da população, dos problemas de saúde mental etc), dinâmica que se aprofunda com o neoliberalismo e o capitalismo cognitivo, apropriando-se de processos antes inimagináveis;
(c) a crescente percepção dos efeitos de nossa existência destrutiva no Planeta Terra, fortalecendo a percepção de nossa interdependência com outros entes; não é casual que os conceitos de Antropoceno, Capitaloceno ou as diversas expressões que falam sobre o “fim do mundo” estejam mais presentes em nossos vocabulário;
(d) por fim, há também uma crescente percepção por diversos segmentos das esquerdas mundiais, de que os projetos institucionais de poder na condução de politicas Estado-cêntricas tem se relevado insuficientes para dar conta da complexidade dos problemas atuais.
O Comum emerge, portanto, como um outro território: nem público-estatal, nem privado. Ao mesmo tempo, o Comum depende do público e do privado para existir, e vice-versa. Tanto o público-estatal como o privado nutrem-se de tudo aquilo que é Comum. Porém, se o Comum for submetido a formas exclusivas de controle (seja pelo Estado, seja pelo Privado) ele corre sério risco de erosão.
Assim, vamos acumulando pistas sobre o Comum para melhor descreve-lo. Já podemos apontar que ele não é exatamente um objeto (uma coisa/bem comum). Ele “acontece” e se produz no “entre”: ele é sempre co-produção; ele depende de uma comunidade que o produza e o sustente; ele acontece nos espaços intersticiais (entre o publico-comum-privado), entre o individual e o coletivo.
Ele é também um princípio, uma sensibilidade que dá consistência à fabricação de mundos. O Comum é tanto uma forma de descrição de uma realidade (com suas práticas, normas e leis) como um princípio Político (na acepção de Laval & Dardot) que funda um modo de produção do mundo. Dizer que partimos de uma “ontologia do Comum”, significa dizer que o Comum existe, mas seu “modo de existência” define-se “em relação”. É na relação em que ele está envolvido – qual o circuito das relações em que ele está implicado – que sua expressão será definida. Mas, para que ele “exista” há sempre alguns elementos presentes. Voltemos aos exemplos.
A forma mais habitual em que o Comum se inscreve na literatura acadêmica, é na sua versão do “Commons”, enquanto “recurso comum” ou “bens comuns”. Na literatura histórica e social, podemos pegar tanto os trabalhos do E.P. Thompson como da Silvia Federici, temos um relato preciso de como os bens comunais (as terras de uso comum) eram utilizadas e geridas coletivamente pelas comunidades, e como o advento e expansão da propriedade privada através dos cercamentos, esses bens comuns foram sendo expropriados. Ao mesmo tempo, a análise revela como a produção nascente explora esses recursos comuns. Importante destacar aí as lutas camponesas e as lutas das mulheres como principais protagonistas no enfrentamento da expropriação dos bens comuns.
Nos anos 90, a noção de Commons também se populariza graças aos trabalhos da cientista política e economista Elinor Ostrom, primeira mulher a ganhar o prêmio Nobel de economia (em 2009). Ostrom dedica-se a investigar e a demonstrar como surgem arranjos institucionais (formais e informais) que serão capazes de produzir e sustentar um determinado recurso comum. Num primeiro momento, ela se dedica a mostrar como a água, florestas, estoques pesqueiros entre outros, são co-geridos pelo conjunto dos atores envolvidos no seu uso. A água, a madeira, o pasto etc, transforma-se num Comum quando são reconhecidas como um “recurso comum” de uma atividade produtiva que deve ser gerida “entre-todos” sob pena de sua destruição. Em resumo, é o arranjo institucional – uma forma de governança entre diferentes atores (públicos e privados) – que dá existência ao Commons. Isso significa que os atores aí envolvidos estão sensíveis para suas relações de co-dependência.
Mas Ostrom (outras autoras e autores) também se dedica a investigar esse mesmo problema quando aplicado a bens de ordem imaterial: a cultura, o conhecimento, a informação. No caso dos bens de ordem imaterial parece contra-intuitivo que eles sejam passíveis de propriedade exclusiva, dada sua característica não-rival e intangível. Há uma vasta bibliografia que irá demonstrar as vantagens dos bens imateriais serem reconhecidos como bens comuns – que são de todos e ao mesmo tempo de ninguém. O argumento vai da direção de afirmar que é graças à existência de bens comuns imateriais que todas as outras atividades podem se desenvolver (o conhecimento, a ciência, se desenvolvem tanto mais quanto mais livre for o conhecimento). A linguagem (nossa língua por exemplo), a informação e cultura participam de toda atividade produtiva.
Porém, com a crescente expansão das tecnologias de informação e comunicação digital, e sua penetração nas mais diversas atividades econômicas, observamos como a informação e a cultura tornam-se objeto de novas formas de apropriação exclusiva. Basta pensar na expansão dos regimes de propriedade intelectual. Atualmente, saberes ancestrais sobre técnicas de cultivo (um Comum fundamental de muitas populações) são objeto de disputas jurídicas de patentes sobre sementes, etc.
Um outro exemplo. A capacidade de ler e escrever em português é, para todos nós, uma habilidade ordinária e quase naturalizada. Mas o que ocorre quando somos impedidos de ler algo porque uma determinada informação só está disponível para aqueles que tem acesso à uma determinada tecnologia que permite a leitura? Basta pensarmos nas inúmeras barreiras colocadas pelas restrições de direitos autorais ou softwares proprietários que transformam um recurso antes comum e abundante em um bem escasso. É neste sentido que as lutas pelo livre acesso à informação e ao conhecimento produzem um novo Comum. A cultura é produzida entre-todos, ela é de todos e ao mesmo tempo de ninguém. Para garantir que o acesso ao conhecimento se efetive como um Comum é necessário criar infraestruturas (por exemplo bibliotecas, bancos de dados, internet, softwares livres), códigos, leis que promovam o livre acesso ao conhecimento. O Comum é indissociável da comunidade que o produz e das condições que dão suporte à sua produção.
Os exemplos são infinitos. Nossa experiência nas redes digitais e tudo que produzimos em nossa vida mediadas pelo digital são um bom caso para refletirmos sobre essa fronteira ambígua entre a colaboração e cooperação, a apropriação e produção de valor. A maneira como nossa interação online é facilmente convertida numa economia da atenção, como nossos dados pessoais e como os dados de nossas interações alimentam uma enorme economia informacional. Perceber esses agenciamentos, perceber a forma como a privacidade, a intimidade e nossas formas de visibilidade, participam de uma nova economia envolve uma profunda investigação dos regimes de sensibilidade que estão sendo gestados.
Negri e Hardt problematizam como o Comum emerge numa dupla dimensão diante das transformações do capitalismo contemporâneo. De um lado, o Comum enquanto produção biopolítica da Multidão, que está integrada e explorada pelas novas formas de produção de valor do capitalismo (como por exemplo e maneira como nossa inteligência, a colaboração, os atos de comunicação participam cada vez mais da produção econômica); e por outro lado como potência de resistência biopolítica que dá forma ao Comum enquanto terreno de novas lutas.
Na medida em que cada vez mais diferentes aspectos de nossas vidas participam da produção econômica, esses autores problematizam como a produção capitalista torna-se a produção da própria vida, logo biopolítica. Nossa experiência de cidade, o ar, nosso tempo de vida e de atenção, são exemplos do Comum que pode ser submetido a processos de codificação para ser explorado.
Pensemos, por exemplo, no tempo gasto em nossos deslocamentos nas cidades, e a forma como a distribuição desigual deste tempo participa da produção de uma espacialidade absolutamente estratificada e desigual. Ademais, pensemos em como este deslocamento é ainda submetido à uma lógica de rentabilidade e superexploração. Podemos tomar as lutas pelo passe-livre como uma luta que coloca o direito à cidade, o direito à mobilidade como um Comum.
Aqui, é interessante destacar que uma reivindicação inscrita na Política do Comum, modifica o regime de subjetivação e de sensibilidades. O tempo de vida é Comum entre-tod@s. Posso reivindicar o direito à mobilidade não a partir de uma categoria de pertencimento específica (sou homem, mulher, estudante, idoso…), mas sim a partir do direito a um Comum.
Por isso a diferença com a “Política” de Rancière que emerge nos momentos de ruptura da “partilha do sensível”: qual é a parte que me cabe num mundo (único) comum; ou ainda, reivindico minha participação num mundo do qual fui excluído. Evidentemente a maneira como o Estado responde é tentando traduzir e submeter tal reivindicação a um regime de subjetivação moderno, distribuindo as “partes divisíveis” conforme as categorias de pertencimento (para estudantes, para idosos…). A Política do Comum forma um outro relevo, dado que o Comum não é divisível.
O Comum transborda a oposição entre o particular e o universal. Como bem aponta Lazzarato, “a reivindicação de direitos para todos não parte da definição de uma identidade, mas da dissolução das identidades nos agenciamentos moleculares da multiplicidade. Não se trata de dizer “nós temos direito a isto porque somos aquilo”, mas sim “nós temos direitos a isto para nos tornarmos uma outra coisa”[…] “a constituição do sujeito político é uma “desidentificação” que nao pode desenvolver-se a não ser como proliferação de mundos possíveis que escapem deste mundo “comum e partilhado” que está no fundamento da política ocidental. Para recolocar em xeque as designações identitárias, deve-se deixar de acreditar na idéia de que só há um mundo possível”. Na visão deste autor, esta seria a passagem para uma “democracia do devir”, uma “política do acontecimento”.
Outro exemplo que me parece interessante é o caso do CouchSurfing versus o Airbnb. No Couchsurfing as pessoas viajam e ficam hospedadas gratuitamente na casa de outras pessoas. É uma economia da dádiva que propicia um tipo de experiência para os viajantes e para os anfitriões. Noutro caso, o Airbnb permite que transformemos um espaço de nossas casas num ativo econômico que pode ser monetizável. Num contexto de expansão do Airbnb já temos observado dois fenômenos: (a) pessoas que deixaram de receber gratuitamente pessoas em suas casas pois decidiram gerar renda com a hospedagem. Neste caso, na medida em que isso se amplifica é a Hospitalidade enquanto Comum que entra em erosão; (b) mas outro conjunto de efeitos que hoje já é nomeado como “Turistificação”. De repente os moradores de um determinado prédio que passa a ter muitos imóveis alugados se dão conta que as relações e vizinhança foram destruídas; ou ainda, um bairro que começa a concentrar muitos imóveis de aluguel de temporada também tem a “vida de bairro” destruída. O “bairro” aqui é um Comum ameaçado. Reivindicar o “direito ao bairro” na chave de uma Politica do Comum implica numa outra sensibilidade, uma outra percepção sobre as relações de co-dependência. É por isso que em muitas cidades têm emergido experiências de luta de produção de relações de vizinhança, essas relações são fundamentais no suporte à vida cotidiana.
Mas talvez, a situação onde melhor possamos visualizar a tensão entre o sensível e o intangível na produção do Comum seja no caso de todas as atividades relacionadas ao cuidado e ao trabalho afetivo e comunicacional. São as feministas que aportam uma diferença substantiva para essa discussão em torno do Comum e do trabalho considerado “imaterial”. Ora, todo trabalho é um trabalho do corpo, a atenção exige um elevado dispêndio de energia (vital, afetiva). São muitas as camadas de trabalho invisibilizadas que estão no centro da reprodução da vida. Trabalhos sem o qual a vida não seria possível. São muitos os estudos aqui que demonstram como o trabalho de reprodução da vida foi gradualmente expulso da esfera da produção de valor, para se tornar um trabalho não-remunerado mas que é fundamental para a própria reprodução do trabalho considerado “produtivo”. Reivindicar este trabalho, antes considerado invisível, na chave do Comum permite interrogar, por exemplo, as distinções entre micro e macro política, revelando como a sociedade como um todo se produz e se reproduz nas ínfimas relações do cuidado cotidiano. A riqueza dos movimentos feministas que eclodem em toda parte estão modificando significativamente o regime de sensibilidade em torno dessas questões.
Hoje, quando enfrentamos dificuldades para criar nossos filhos em razão de nossas formas de vida, damo-nos conta de como a vida foi privatizada através de diferentes dispositivos. Para criar nossos filhos precisamos produzir Comum, criar alianças, criar novos modelos de parentesco. Uma criança precisa de uma tribo. É todo um Comum que tem que ser produzido se quisermos criar alternativas aos modelos de terceirização dos cuidados.
Apresentei acima um pequena seleção de exemplos relacionados à produção do Comum, em suas diferentes acepções. No debate contemporâneo, o livro de Laval & Dardot faz uma excelente revisão teórica deste tema. O mais importante, a meu ver, é que esses autores procuram elaborar uma narrativa teórica-política que seja capaz de abarcar uma diversidade de experiências em torno do Comum, de forma a toma-lo como um “Princípio Político”. O que quero destacar no argumento desses autores, é que tal proposta implicaria: numa outra forma de composição da política, modificando o regime de subjetivação política e de produção dos sujeitos de direitos; e numa outra forma de composição entre o público-privado, econômico-social, reconhecendo, como o fazem as feministas, que toda a vida é política:
“a identidade do princípio (o comum) não suprime a distinção das esferas (social-econômica, público-privada, politica, e publica-publica), mas tem a função de organizar o social de tal maneiro que seja possível uma deliberação na esfera pública que não fique prisioneira dos interesses de tal ou qual categoria socio-profissional. Isso só pode acontecer se a esfera da produção e dos intercâmbios se reorganize a fundo a partir do autogoverno do comum” (Laval & Dardot).
Neste sentido, estaríamos diante de uma outra composição do mundo sensível. A Política do Comum implica portanto noutro regime de sensibilidades, noutro regime de subjetivação. Aqui, nesta parte final, desejo articular a “produção do Comum” ao processo de individuação. Como indicado logo no início do texto, uma Política do Comum tal qual estamos propondo permitiria escapar às dicotomias individuo-sociedade e natureza-cultura, através de outras alianças.
Concluo dialogando com o trabalho da filosofa catalã Marina Garcés, pois acredito que ela recoloca esse problema em termos mais adequados à reflexão que me foi proposta pela Bienal.
Garcés propõe que pensemos o ser como inacabamento. O ser não é uma dimensão estável ou transcendente que espera ser contemplada ou que contempla um mundo do qual ele estaria separado. Há uma co-implicação entre os seres e o mundo, há uma relação de continuidade. Dessa perpectiva “involucrada” em um mundo comum a ontologia é um espaço de vulnerabilidade.
“Desde um sujeito que é um corpo, ou seja, não é uma consciência separada senão um nó de significações vivas entrelaçadas a certo mundo, não se trata de explicar meu acesso ao outro, senão nossa co-implicação em um mundo comum. Não se trata, portanto, de explicar a relação entre indivíduos, senão a impossibilidade de ser “somente” um indivíduo. Esta é a condição para poder descobrir-se em situação, ou seja, para reaprender a ver o mundo não mais desde uma mirada frontal e focalizada do indivíduo, mas desde uma excentricidade inapropriável, anônima, da vida compartilhada”[…] E noutro trecho, a “potência da situação, como uma conjunção concreta de corpos, sentidos, silenciosa, alianças, modos de fazer, rotinas, interrupções, etc, que desenham um determinado relevo, e não outro.”
Por fim, talvez outra palavra que podemos incorporar aqui em nosso vocabulário e discussões em torno do Comum, é a noção de aliança: quais são nossos modos de composição (entre humanos mas também não-humanos). Garcés, ao invés de perguntar “o que nos une?”, interroga “o que nos separa?”.
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Referências
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