Junho está sendo
Este texto é a introdução do livro JUNHO: Potência das ruas e das redes, editado pela Fundação Friedrich Eber. A introdução foi escrita de forma coletiva por Hugo Albuquerque, Jean Tible, Alana Moraes, Henrique Parra, Salvador Schavelzon e Bernardo Gutiérrez. O livro é uma compilação de relatos das jornadas de junho e desdobramentos da maioria das regiões do Brasil.
Livre download do livro em formato PDF: JUNHO: potência das ruas e das redes.
O vídeo abaixo é a apresentação do livro realizada o passado dia 04 de março em São Paulo.
Em uma era na qual a morte de quase tudo – de deus até a filosofia, dos heróis às celebridades do momento – é decretada, antecipada ou mesmo inventada, a História dificilmente passaria incólume: ela teria encontrado o seu desfecho com a queda do muro. Fim de papo, agora nos restava carregar o seu pesado caixão, em um caminho único, até uma cova bem rasa. Com a História, morriam juntos, no mesmo incidente, a utopia, o porvir e o horizonte. Mas tal como ocorreu com Mark Twain, os boatos sobre sua morte se mostraram um exagero.
Já nos anos 1990, o ciclo de lutas antiglobalização dera mostras de que não era bem assim. Outros mundos eram possíveis e, acima de tudo, desejados. No começo do século XXI, as manifestações antiguerra também interrogavam os caminhos que se apresentavam como inevitáveis. A crise financeira de 2008 nos EUA e na Europa e os diversos protestos e movimentos que aí germinaram; os levantes da Primavera Árabe, dos Occupy, as largas manifestações na Rússia nos fins de 2011, as manifestações espanholas e gregas e uma miríade de outros processos multitudinários indicariam um novo ciclo em relação aos conflitos do final do século XX. Quais as continuidades e rupturas? Quais são os repertórios, as formas de organização, as reivindicações e concepções políticas em jogo? Quais as disrupções?
O Brasil, no fim das contas, dificilmente ficaria ilhado. Depois de um ciclo de ascensão democrática e popular ímpar na história do país, marcada por um processo sem precedentes de inclusão socioeconômica na década de 2000, as transformações selvagens que abalaram as estruturas do Brasil passaram a ser enquadradas por uma política gerencial, com preocupações quase que exclusivamente econômicas – as quais se encontram delineadas na forma do “desenvolvimentismo”. Nessa esteira, um ar de imutabilidade capturava nossas imaginações políticas e uma inércia tomava cada vez mais as nossas vidas.
Foi por muito pouco – aparentemente “apenas” por alguns centavos – que o copo transbordou. O baixo valor objetivo tinha uma enorme, e ignorada, dimensão subjetiva. A névoa de normalidade e estabilidade plena se desfez. A revolta contra o aumento da passagem traduzia naquele momento, em um só golpe, formas elementares de opressões e cerceamentos da vida cotidiana que já não nos dávamos conta: mobilidade, acesso à cidade, a necessidade de ocupar as ruas, de nos afetar com os encontros, de exigirmos uma distribuição radical das terras latifundiárias da política. A explosão veio quando as manifestações metropolitanas, iniciadas em capitais como Natal, Porto Alegre e Goiânia se viram em meio a levantes contra os reajustes tarifários do transporte público e se espalharam para outras cidades como São Paulo e Rio de Janeiro.
A história sobreviveu, se fez presente. Desta vez, no entanto, a História não teria um único embandeirado-sujeito carregando-a até um destino final previamente definido (a revolução, o poder, uma reforma constitucional). Em Junho, a história perderia o H maiúsculo. Longe da transcendência e do universal, as manifestações produziriam um enxame de redes e afetos, nem sempre encolunados numa subjetividade do Um e dos relatos clássicos da emancipação. A história caminharia na cidade e se conectaria com florestas e territórios indígenas, com corpos periféricos e desviantes, subverteria as gramáticas tradicionais das identidades fixas e fixadas, se desconectaria das instituições, não mais lugar exclusivo da política. Uma política corajosa e até então desconhecida, encontraria vetores de transformação e ar fresco em histórias outras, no espaço do comum que encontros novos abririam.
Dos atos ao acontecimento
Vamos fazer um flashback para tentar entender o furacão político das jornadas de junho: dia 13 de junho, quarto ato do Movimento Passe Livre (MPL). O protesto enfrenta por horas uma repressão policial pesada. Até então, a grande mídia estava ignorando a repressão policial, mas centenas de cidadãos registravam em tempo real com seus celulares o uso abusivo de gás lacrimogêneo e balas de borracha. A raiva explode. O dia 13 foi o ponto da virada. O rumo da onda de protestos que começou com o primeiro ato do MPL (06 de junho) havia mudado. Um estudo de Interagentes mostra que o MPL perdeu a liderança nas chamadas e conversas online após a violência policial. Perderia também o protagonismo das ruas a partir do ato do dia 17 de junho. O Brasil registrou, entre o 13 e o 17 de junho, um dos maiores volumes de tuítes da história. Um estudo de PageOneX.com visualiza uma explosão gigantesca, uma poderosa onda subjetiva e emocional nas chamadas mídias sociais. A mídia brasileira vinha falando dos “vândalos” desde o início dos protestos, criminalizando os manifestantes. Mas, como aconteceu na Turquia, onde os manifestantes do Gezi Park foram chamados de “chapullers” (vândalos), a indignação tornou-se empoderamento. No Brasil, em reação à manipulação midiática que insistia em contrapor os manifestantes “cidadãos” aos “vândalos criminosos”, muitos assumiram o nome múltiplo de vândalos ou baderneiros: “v de vinagre”, “v de vândalo”, “Maria Baderninha”, “Pedro Baderneiro”. Junho também produziu uma guerra de classificações e como consequência, uma demanda urgente pelo direito à autorrepresentação. O estudo de PageOneX.com mostra claramente como a violência policial deu passo à indignação. Posteriormente, o empoderamento emocional transformou o protesto pelo transporte em uma revolta coral, plural e fragmentada a serviço de novos imaginários: “por uma vida sem catracas”, “não é por vinte centavos, é por direitos…”.
No sábado, dia 15, aconteceu um episódio importante, que depois passaria despercebido em meio ao caldeirão emocional da revolta “vândala”. Alguns movimentos sociais mais tradicionais – entre eles a Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) – fizeram manifestações em Brasília, Belo Horizonte e Rio de Janeiro contra a Copa das Confederações. A novidade foi que alguns membros destes movimentos pediram colaboração a alguns hacktivistas do Anonymous. Teve lugar uma reunião na rede de chat encriptado CryptoCat, em uma sala chamada Garrincha, entre hacktivistas e militantes. Ninguém dos movimentos clássicos que estava dialogando na sala Garrincha sabia que o nível de viralização, dentro do contexto da onda do Passe Livre, iria ser galático.
A manifestação de 17 de Junho (# 17J), que acabou na ocupação do teto do Congresso Nacional em Brasília e com milhões de pessoas nas ruas do Brasil todo, já é parte da história. A inédita confusão do “juntos e misturados” foi a praia comum durante vários dias, algo inédito na história recente do Brasil, mais acostumado com o “juntos e não misturados”. Curiosamente, um novo embate político se estabeleceu entre a diversidade de sentidos da potência das ruas e a agenda da mídia.
Outro corte: 20 de junho de 2013, Recife. A capital pernambucana viveu uma das maiores manifestações de sua história. A diferença do resto das cidades brasileiras, que já haviam tomado massivamente as ruas no dia 17 de junho, era a primeira grande manifestação de Recife nas jornadas de junho. The Sign of the Brazilian Protest, um infográfico interativo do jornal The New York Times feito a partir de uma fotografia aérea da manifestação, é uma boa metáfora da “fase II” das jornadas, quando o transporte deixou de ser a única pauta das redes e das ruas. Na foto observamos dezenas de cartazes, de gritos, de lemas. E nenhuma bandeira de partido. De todos eles, um cartaz especialmente simbólico: “Há tanta coisa errada que não cabe neste cartaz.” Ao longo de todas as manifestações de junho vimos muitos cartazes nessa direção. Mensagens não programáticas, mas agregadoras, como: “neste cartaz cabem todos os gritos”. Outros, destacavam a vida para além das redes digitais: “saímos do Facebook.”
O trem da multidão teve seu auge naquele mesmo 20 de Junho, na Avenida Paulista de São Paulo, tomando de assalto a palavra, desestabilizando a política da previsibilidade e a agenda do “que é possível pra hoje”. Ao lado esquerdo da Avenida Paulista, perto de Consolação, manifestantes muito heterogêneos (skatistas, coletivos LGBT, máscaras de Anonymous, famílias) caminhavam rumo ao MASP sem bandeiras nem símbolos de partidos. Paradoxalmente, no lado direito, organizações e movimentos da esquerda organizada – principalmente militantes do Partido dos Trabalhadores (PT), do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), grupos universitários libertários e trotskistas e de movimentos sociais – marchavam acenando bandeiras vermelhas, alguns deles estavam lá desde as primeiras manifestações, outros aderiam naquele momento.
Era “tudo junto e misturado”. Na avenida Paulista não tinha um só grito. Nem sequer um só inimigo. Havia, isso sim, muito mais cartazes contra Dilma Rousseff que nos primeiros atos convocados pelo Movimento Passe Livre (MPL). Não à toa, a ocorrência de confrontos entre os dois lados da Paulista se registrou naquele dia. Algumas pessoas tinham transformado a música “Vem pra rua vem contra o aumento” dos primeiros atos em “vem pra rua vem contra o Governo”. O que aconteceu desde o primeiro ato pela redução da tarifa do transporte puxado pelo MPL-SP no dia 06 de junho?
Nas tentativas de entender os grandes acontecimentos de mobilização e luta, nos passam pela cabeça certas imagens: Maio de 68, o 15M espanhol, o 19 e 20 de dezembro na Argentina ou as milhares de cidades ocupadas no contexto do movimento Occupy. A questão que sempre retorna: Qual é o saldo político? Quais eram as demandas e até que ponto o sistema político as atendeu? Qual o acúmulo de cada força política e quanto delas foi dissipado sem continuidade em projetos políticos institucionais? Por trás das perguntas, sempre uma tentativa de buscar resultados em termos do tempo político normal, que justamente esses eventos modificam.
A distância entre a energia que circula nas ruas e nos imaginários dos protestos e, do outro lado, a tentativa de tradução em termos de organização política é sempre abissal. De fato, não é incomum que as imagens de praças e avenidas lotadas se sobreponham às da represão, da retomada conservadora e refluxo de movimentos. O Termidor sempre se apresenta na volta da esquina. É nesse momento que os apressados do desencantamento sempre dirão: “a revolta fracassou”, “a ordem foi estabelecida”, “não deu em nada”.
Os acontecimentos que se relacionam e revertem o tempo político são reconhecidos apenas como momentos “efêmeros”, os desejos e vontades se reduzem a “impulsos imaturos da juventude”, “utopia” ou “falta de sensatez”. “Está na hora de voltar pra casa”, algumas vozes disseram em Junho, “concordamos com vocês, mas as reformas que vocês querem não são possíveis”. Nesse momento, se impôs também uma leitura reducionista, onde os protestos eram lidos como antiprogressistas, como golpistas até – em algumas versões que circularam nas imprensas de países vizinhos – na tentativa apressada de devolver ao Estado a iniciativa, no que seria o espaço exclusivo da política. Continuar nas ruas era desestabilizar a democracia e questionar a legitimidade das instituições como lugar natural onde todo protesto deve se desvanecer.
Pensar um Junho que está sendo; pensar um, dois, três anos de Junho, de estar em Junho – e não apenas, o que se passou desde junho — faz parte de uma visão política ampla que resiste em decretar o fracasso dos acontecimentos que atualizam a História, que resiste a negar a potência da ação coletiva no imaginário político, apenas pela falta de institucionalização da revolta. Não vemos que a explosão de afetos, encontros e conexões das ruas deva ser necessária e inexoravelmente reduzida à representação e ao avanço da política profissional sobre a espontaneidade múltipla da irrupção política do fora. Foi justamente nas beiradas, na espontaneidade, nos laterais dos protestos iniciais e em alguns desdobramentos onde o ‘Brasil gambiarra’, híbrido e informal, alegre e transversal, manifestou que ainda existe ou que existirá. A história é feita no nível da fala, nesse momento onde a língua reconhecida e oficial é subvertida e os símbolos correm o risco de perder o seu sentido primordial.
Junho parou máquinas da política que pareciam imutáveis. Junho teve consequências concretas no sistema político e na multiplicidade de projetos políticos locais que terão presença na política brasileira por décadas. Além disso, Junho afetou de forma irreversível a gramática da produção de consensos, acelerou a reflexão sobre a urgência de uma política mais distribuída, alterou a rota segura e impávida da narrativa desenvolvimentista do crescimento, produziu doses intensas de desenfeitiçamento. Junho emergiu como um dispositivo disruptivo que quebrou o relato político e social prévio sem destruí-lo completamente. Junho também se insere em narrativas anteriores, como a de que Junho é pedir para avançar mais a partir do já feito. Mas Junho não emerge como uma meta narrativa rígida e categórica. O novo relato é um mosaico de fragmentos, de micro-utopias conectadas, de indignações distribuídas, de sonhos prévios, de novas sensibilidades. A multidão, transbordando as fronteiras do institucional, questionou o consenso, a realpolitik do pemedebismo como única política do possível.
A vigência de Junho, a possibilidade do impossível e do improvável na política do Brasil, está presente nos textos que aqui apresentamos. Eles trazem o ar respirado por subjetividades políticas que hoje e para sempre formam parte das capas geológicas onde a vida social reinicia e dá continuidade às lutas. Em diálogo direto com a profundidade da história, tão perto e tão longe da política e da gestão, vemos junho como produto e gerador de um novo tempo de desejos e mundos políticos que encontra nas ruas e nos gritos de um Brasil menor, radicalmente diferente do Brasil potência. O impacto simbólico, subjetivo, de junho vive ainda no “por uma vida sem catracas” que permeia as novas sensibilidades políticas.
No bojo dessas revoltas, surgiram novas formas de luta, novas táticas de insurgência, mas, também, novas tecnologias de repressão. Não se trata de um evento épico, ele é polifônico por natureza, logo, dramático. E seus contrastes, dobras e ambivalências nos levam não a um drama barroco, mas um drama histórico sobre uma situação barroca: deus e o diabo se encontram na Terra do Sol.
A nova luta, sem líderes, sem verticalidade e sem rosto emerge contra um aparato novo policial – no qual, além da própria polícia propriamente dita, se incluem também a mídia, o Judiciário, o Legislativo e o Executivo. Ele está pronto a identificar, rastrear redes, prender e punir – não raro, fazer sumir, como no caso Amarildo.
Além da disputa do grande Estado-polícia contra o movimento, fenômenos outros pipocam. Em grau molecular, e fora do Estado, é possível ver fenômenos perturbadores como o (re)aparecimento de fascismos variados, os quais literalmente mostram a cara – e as garras! – no saudosismo de uma ditadura que sequer viveram. Em contraste – e até em oposição –, jovens pobres e muitas vezes negros resolvem cobrar a promessa não cumprida de liberdade e profanam os templos do consumo, na era da religião do deus dinheiro, com os chamados rolezinhos. Com Junho, o conflito floresce de forma intangível e a imagem de uma sociedade pactuada e integrada se desfaz: “a classe média agora entendeu a repressão policial que os negros e pobres sofrem todos os dias”.
As direitas e a grande mídia também tentaram se apropriar do poderoso grito de junho, dirigindo as ruas contra o Governo Dilma, depois da grande explosão do dia 17 de junho. A esquerda institucional também tentou emplacar suas estruturas e narrativas sobre junho. O “Dia Nacional de luta”, promovido pelo movimento sindical e outros movimentos sociais no dia 11 de julho de 2013, com carros de som, falas intermináveis, lutas por inscrições dos representantes na Avenida Paulista e na Av. Presidente Vargas no Rio, apenas mostrava que os formatos tradicionais das lutas precisavam ser radicalmente repensados. A retomada estatal (os 5 pactos da Dilma) chegou com a ideia de “estamos faz tempo trabalhando nisso ai que vocês agora pedem nas ruas”. O Governo e o Governismo não dialogavam de forma honesta com o acontecimento, muitas vezes o acusando de “conservador” e “manipulado pela direita”. Só conseguiram fabricar um storytelling artificial que buscava se inserir na linguagem da TV e no marketing político. Porém, os relatos únicos sobre junho fracassariam, diluídos na coreografia plural das redes e das ruas.
No entanto, Junho seguia afetando mesmo os mais céticos. Setores importantes da esquerda começavam a incorporar as pautas da desmilitarização da Polícia Militar, a luta pelo direito da livre manifestação, a radicalização contra os monopólios dos poderes locais, a pressão pelas auditorias das empresas de ônibus. Todas as pautas que justamente emergiam com força das ruas e que passavam a ser “levadas a sério” com mais centralidade pelas esquerdas e pelos movimentos sociais mais consolidados.
O acontecimento Junho criou e ao mesmo tempo descobriu um novo Brasil. Seja por trazer novos atores para cena ou, quem sabe, por mostrar o que há por trás das cortinas da própria encenação. O processo em curso suscitou inúmeras inquietações, criando algumas delas ou fazendo-as chegar à superfície.
Quando Dilma Rousseff chamou o Movimento Passe Livre para dialogar, eles disseram que seria melhor se ela convidasse as periferias, negras e negros, povos indígenas. A multidão não tinha rosto. As lideranças rejeitavam ser portavozes das ruas. A volta da História seria, assim, a proliferação de histórias diferentes, lutas que se encontram e começam a interagir. Seria também um novo tempo contra a História, de mundos que nascem ou resistem ao desaparecimento. Um reencontro da política com as ruas, que imediatamente se conecta com territórios indígenas, com ocupações de praças e diferentes territorializações, que para a política de cima e de gabinetes fechados é uma não-história, um passado remoto, algo que não existe nem se vê.
Grupos, Redes ou Movimentos?
Por algum motivo, a multidão de Junho não tomou a forma de um novo movimento nacional, como aconteceu no Diren Gezi turco, no 15M espanhol ou no #YoSoy132 mexicano. Curiosamente, são muitos os que ainda falam “do movimento”. Os participantes do OcupaAlckmin, que acamparam na frente do Palácio de Governo de São Paulo, reconhecem que não são mais um grupo, mas sim uma rede. Junho é também uma rede criada. Uma rede de afetos, uma rede comunicacional, uma rede de troca de experiências. Um novo ecossistema social que não substitui o ecossistema prévio, mas que convive com ele. Os novos atores como Ocupa Estelita dialogam com Resiste Isidoro em BH, Ocupa Cais Mauá de Porto Alegre ou a Casa Amarela de São Paulo. Mas também trabalham junto ao MTST e os movimentos clássicos de moradia. O novo não anula o velho mas convive. Junho produziu também coexistências potentes e interessantes.
A multidão não tem nome. “O movimento” não tem nome. Tanto faz. Junho provocou o surgimento de um novo sistema de ação social. Um sistema-rede no qual convivem novos atores (perfis, coletivos, movimentos, redes, identidades coletivas) e estruturas tradicionais (movimentos, partidos, sindicatos). Esse diálogo e convívio possibilitou, por exemplo, o sucesso da greve dos garis do Rio de Janeiro de 2014, por fora das estruturas das direções sindicais.
Junho – seja movimento, ecossistema, sistema rede ou nova gramática social – não é unicamente antagonista, “contra”, um dispositivo destrutivo. Junho resiste, mas também constrói. Os novos atores, dialogando com o que já existia de lutas, criam novos espaços de construção política. Junho constrói trilhas, caminhos, seja na Assembleia Popular e Horizontal de BH, ao redor do Parque Augusta de São Paulo, no Ocupe Estelita de Recife, no movimento Casa no Campus em São Luís, no “Fora Feliciano” ou em plataformas de mídia livre.
De fato, não foi o “Facebook”, uma plataforma bastante centralizada, a responsável pelo levante. Contudo, a maneira com a ferramenta, apesar de suas limitações, foi reinventada pela rede real das ruas teve efeitos relevantes. Os eventos criados na plataforma ganharam significado: se tornaram espaços autônomos de diálogo dentro do rígido Facebook, muitos destes vitais para tomar as ruas como mecanismo de convocação, cobertura em tempo real e troca de dados em geral.
Junho não teria sido possível sem a cultura de redes constituída ao longo dos últimos anos, e pela própria militância virtual durante o levante, mas tais redes devem ser pensadas como um agenciamento: humano/máquina, redes “concretas”/rede “virtual”; não a ferramenta em si, como se ela fosse dotada de poderes mágicos e autônomos, mas dos significados e subversões promovidos pelos ativistas.
As redes centralizadas clássicas (mass media, Governos, partidos) saíram vivas de Junho, mas tomaram um susto gigantesco. As diferentes topologias de rede conviveram, desfazendo consensos, inércias, fluxos lineares do passado. A maneira como os grandes jornais mudaram de opinião expõe muito bem isso: de repente, os editorais dos grandes jornais paulistanos pediam a repressão aos “vândalos”, mas rapidamente a “opinião pública” foi desdita pela construção em rede de uma verdade narrativa sobre o que aconteceu: editoriais desesperados expressando mudanças de opinião, colunistas conservadores pedindo desculpas pela condenação aos movimentos proliferaram.
O saber coletivo expresso em rede desmentiu versões oficiais, trouxe provas concretas de violações perpetradas por autoridades, promoveu enxames de links com streamings etc. Uma “nova verdade”, a partir da ótica dos oprimidos organizados em rede, desafiando a velha mídia. Da política mais tradicional, ao mesmo tempo, esperava-se o momento da necessária institucionalização: a rede era valorizada como um “momento de explosão das ruas”, mas o desfecho, segundo essa visão, deveria ser inexoravelmente institucional. A rede, no entanto, resistiria a tentativas apressadas de desconfigura-la. Uma vez com vida, ela não deixaria de tecer articulações e incluir nós horizontais em sua trama.
Junho está sendo
Os efeitos das jornadas que transformaram a política desde baixo estão em curso. A intersecção da realidade específica do Brasil com o ciclo global de lutas produz efeitos que ecoam com muita força há mais de um ano. Só uma cartografia das lutas pode nos fazer avançar sobre o terreno pantanoso das confusões, propositais ou não, acerca dos seus significados. Mas é preciso fazer uma cartografia que vá para além dos espaços e dos tempos, fornecendo um panorama real das lutas e dos modos que o movimento assume em realidades específicas. Uma cartografia, sobretudo, destes desejos, pois é disso que se trata a questão.
Fazer ecoar as vozes dos protagonistas multitudinários, anônimos e persistentes do fenômeno em curso é um pequeno – e imprescindível – passo nesse sentido. É o desafio aqui posto e por onde iniciamos. O desejo, sua potência e suas armadilhas, consiste no enigma que perpassa Junho; e justamente por isso Junho não se encerra em si, ele se ultrapassa. Ele não é, ele está, seu ser é movimento, ele está sendo.
Neste contexto, o livro Junho: Potência das Ruas e das Redes apresenta um conjunto de relatos das jornadas e dos desdobramentos daquela primeira onda de protestos. Sem pretensão de totalidade, o livro traz uma série de relatos descontínuos e livres que indagam os acontecimentos e seus desdobramentos em narrações de protagonistas e observadores de primeira mão. Eles transmitem a multiplicação espontânea, a ocupação e reinvenção de espaços urbanos; a experiência inesquecível de ganhar uma praça, ocupar uma ponte, pular catracas e queimar símbolos do poder. Os textos relatam e analisam; tecem hipóteses e apresentam o tempo de outras ontologias políticas que tensionam a cidade, o país em toda sua diversidade.
A maioria dos textos do livro é de relatos hiper-locais. A paisagem é urbana. O ângulo de câmera quase sempre é fechado: não conseguimos enxergar um horizonte nacional, embora este se adivinhe na combinação de relatos que o supõem. O Brasil é, no máximo, uma hipótese. Todos sentem um pertencimento novo, emocional. Alguns falam do “movimento”, nomeando algo maior, claramente brasileiro, talvez global. As jornadas de junho colocaram sobre a mesa de cada região os problemas locais. Problemas urbanos, tensões contra as elites predatórias regionais que castigam o comum, as necessárias conexões emergiram afetando a todos e todas. Corpos afirmando suas existências nas ruas e produzindo coexistências. A indignação explodiu depois da truculência policial que sentimos nas ruas de várias cidades. Essa indignação conectou as diferentes cidades do Brasil. O desejo de maior participação política permeou tudo, transbordou.
Junho está sendo, junho é, junho será. Está vivo, dentro de nós, diluído nas novas subjetividades, flutuando sobre um novo ecossistema social, criando novos espaços de política lateral. Junho será, nas redes e nas ruas. Junho é. Vive nas micropolíticas, nos muitos projetos-processos sonhados de forma coletiva: nas cidades, favelas, universidades, nos quilombos, nas florestas, nos corpos que procuram liberdade. Chegará de surpresa, como uma nova explosão emocional, como nova gramática social.